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A ÁRVORE CURANDEIRA

(por Angelica Rente, novembro de 2020)

 

Havia uma mulher que vivia numa vila ao pé de uma montanha, em meio a várias outras pequenas aldeias que povoavam a região. Ela exercia seus ofícios de artesã e curandeira, recebendo pessoas que vinham em busca de sua escuta, seus chás e suas bençãos. Ao entrarem em sua casa, segura e confortável, ainda que simples, elas diziam: “Curioso, não sei bem o que é, mas há algo aqui que traz de volta as boas lembranças da minha vida”. Ela sorria em silêncio, divertida, porque sabia que não era por acaso.

 

Ela amava o que fazia, porém, havia algo que a inquietava. Uma curiosidade intensa e a vontade de aprender mais, fazer mais. Ela ficava pensando se haveria mais pessoas que se beneficiariam de seus ofícios nas outras aldeias, pessoas que talvez nem soubessem de sua existência, para as quais ela gostaria de oferecer sua contribuição. Além disso, ainda que muita gente a procurasse durante o dia, a noite ela se sentava em sua casa confortável, à beira do fogo, com suas plantas, suas ferramentas de artesã, suas preces, seus chás e sua escuta e se sentia muito, muito sozinha. Então, uma manhã ela se envolveu em sua capa, pegou uma trouxa com algumas ervas, ferramentas e objetos dos quais imaginava poder precisar, fechou a porta da casa atrás de si e se pôs a caminhar. De aldeia em aldeia ela seguia, em algumas sendo bem acolhida, em outras, recebida com estranheza, muitas vezes encontrando pessoas, ouvindo-as, curando-as e também aprendendo com elas.

 

Um dia, ao chegar numa das aldeias mais distantes, ela percebeu uma movimentação alegre entre a população. Curiosa, caminhou até a praça central e lá estava a razão de tanta animação: um prestidigitador dirigia-se a uma pequena multidão, ao lado de sua carroça colorida, vestido com roupas brilhantes, um chapéu engraçado e o sorriso mais encantador que ela já havia visto. Ela se juntou à platéia, em pé, ao redor da carroça e observou, silenciosa. Quando os aplausos e assobios cessaram, o prestidigitador declarou: “Para meu último número, preciso de um voluntário!” A princípio, ninguém se ofereceu e ela, para sua própria surpresa, se viu levantando a mão e dizendo, timidamente: “Eu vou…” As pessoas abriram caminho e ela se aproximou daquele ser colorido, brilhante e estranhamente familiar. Eles pararam frente a frente e olharam firmemente nos olhos um do outro. Para ela, foi como uma outra dimensão se abrisse, na qual não havia segredos, sua alma se revelando sem que ela soubesse muito bem como. Ele murmurou algo, e ela soube que era uma benção dirigida a ela, e isso também foi surpreendente, já que era ela quem costumava dirigir bençãos aos outros. “Que teus pensamentos, tuas palavras e tuas ações estejam sempre alinhadas, e que isso te torne cada vez mais inteira e firme em ti mesma”. Emocionada e meio confusa, ela voltou ao seu lugar, enquanto o mago, com um volteio e um sorriso, se despedia da platéia, que aplaudia e ria como se tivesse visto outra coisa que não aquilo que havia se passado entre eles.

 

Enquanto a pequena multidão se dispersava, ele partiu. A curandeira viu uma pequena bolsa bordada caída no chão, apressou-se a pegá-la e correu atrás dele, gritando: “Ei, você deixou isso cair!”. Mas o prestidigitador não ouviu e continuou seu caminho, cantarolando ao som dos sininhos pendurados na parte de trás da carroça. Ela ficou parada ali por um tempo, sem saber muito bem o que fazer, e então decidiu guardar a bolsa em sua trouxa e seguir caminho. A cada aldeia que passava, ela percebia que ouvia melhor as pessoas e era capaz de proferir bençãos cada vez mais poderosas e conectadas com aquilo de que elas mais precisavam. A lembrança do prestidigitador e de suas cores vinha a ela com frequência, e ela sorria cada vez que se lembrava dele.

 

De volta a sua casa, ela se lembrou da pequena bolsa bordada que havia recolhido. Procurou-a dentro da trouxa, agora cheia de ervas e objetos que havia trazido das outras aldeias, muitos deles recebidos como presentes, em troca de seus serviços. Ao encontrá-la, segurou-a na palma da mão, um pequeno saco de tecido de cor púrpura, lindamente bordado com linha de prata, que parecia vazio. Mas, ao apalpá-lo, ela percebeu que havia algo dentro, um pequeno volume arredondado. Intrigada, ela cuidadosamente colocou dois dedos dentro do saquinho e retirou… uma semente. Ela a pousou na palma da mão e observou: nada parecida com algo que ela houvesse visto antes, ainda que ela conhecesse um bom número de plantas e suas sementes. Pelo cuidado com que havia sido guardada, ela intuiu que aquela era de alguma planta rara, preciosa. Decidiu plantá-la e observar.

 

A curandeira pegou no fundo do armário da cozinha um vaso de fina porcelana que guardava com muito carinho e encheu-o da perfumada terra que recolheu em seu quintal. Cantarolando baixinho, quase sem perceber que o fazia, a canção que o mago havia cantado no dia em que se encontraram, abriu um pequeno buraco com seu dedo indicador e depositou nele a semente, cobrindo-a com uma leve camada de terra. Regou com a transparente água da bica que corria ao lado de sua casa e colocou o vaso no parapeito da janela de seu quarto, onde ele receberia os raios mais claros do sol da manhã e o brilho da lua cheia.

 

Todos os dias ela regava a terra e esperava, atenta, o despontar do broto. Quando ele brotasse, talvez fosse possível identificar a que planta aquela semente pertencia. Em algumas semanas, surgiu a primeira folha, tenra, fresca e frágil. A mulher sorriu e saudou a vida que nascia, dizendo: “Seja bem-vinda à luz, plantinha!”. Nos dias que se seguiram, mais e mais folhas foram nascendo, enquanto o fino caule aos poucos começava a engrossar.

 

Sob o calor do sol e os raios da lua cheia, a pequena planta crescia, cada vez mais viçosa. Ao mesmo tempo, algo também crescia no coração da curandeira: a vontade de rever o prestidigitador e seu sorriso encantador, o desejo de ouvi-lo novamente e de testemunhar sua magia. Mas ele era um nômade, nunca passava muito tempo no mesmo lugar e dentre as várias aldeias que existiam nos arredores, onde poderia ela encontrá-lo? Ela tentou, saindo em viagem para as aldeias mais próximas, por vezes quase o encontrando, mas sempre chegando depois que ele já havia partido ou mudado de rumo. Por muitas vezes, a plantinha foi regada com suas lágrimas de saudade. Nessas ocasiões, ela percebia que a pequena planta se ressentia, amarelecia e perdia o viço. “Água demais”, ela pensava, angustiada, receando a morte de seu verde tesouro. Em outros momentos, ainda sem entender de que misteriosa planta se tratava, ela a deixava muito tempo exposta ao sol do meio-dia, examinando-a, atenta, em detalhes, buscando encontrar explicações para aquele mistério. Sob a crua claridade e o forte calor, as frágeis folhinhas rapidamente começavam a murchar e ressecar. Assustada, ela recolhia o vaso e o levava de volta a seu lugar, no parapeito da janela de seu quarto, onde vigiava cuidadosamente até que a planta que, nessa altura, já era um pequeno arbusto, se recuperasse.

 

A mulher perguntava aos peregrinos que passavam por sua aldeia se haviam visto o prestidigitador, se sabiam onde ele estava, mas ele parecia ter desaparecido. Desalentada e só, ela escrevia longas cartas a ele, falando de sua saudade, do receio de jamais revê-lo e dando notícias da pequena planta que crescia lentamente, cada vez mais verde, cada vez mais bela. Sem saber para onde enviá-las, ela guardava as cartas num pequeno baú. E, com o passar do tempo, ao observar a plantinha crescer, ao cuidar dela, a curandeira percebia que ia se tornando cada vez mais hábil em suas curas, proferindo bençãos ainda mais potentes, espalhando alegria, alento e serenidade a seu redor. Muitas pessoas passaram a procurá-la, vindo de outras aldeias, buscando sua escuta e sua companhia, e isso a deixava muito contente. Mas havia aquelas que, não compreendendo o quanto sua magia estava conectada ao arbusto, diziam: “Não sei porque você dedica tanto de seu tempo e trabalho a essa planta, você nem sabe quais serão seus frutos, se é que eles existirão!”. Essas falas a entristeciam e, nestes momentos, ela se sentia sozinha e incompreendida. Então, ia buscar consolo na contemplação da planta, que continuava crescendo, lenta, mas constantemente.

 

Ao longo de vários anos, foi aprendendo melhor como cultivá-la. Descobriu que os cuidados necessários eram muito mais simples do que imaginava: além de água fresca e doce e luz na medida certa, ela precisava somente de delicadeza, leveza e tempo para que pudesse se desenvolver. E foi assim que a mulher a tratou, até que o pequeno arbusto se transformou numa árvore frondosa, agora plantada no quintal. Já não importava tanto à curandeira saber que planta era aquela ou que frutos daria, pois ela a amava sendo como era. Além de inspirar sua magia e torná-la cada vez mais poderosa, de alguma forma muito bela, profunda e misteriosa ela a ligava ao mago, e isso bastava. Já não era mais necessário escrever cartas para ele e, percebendo a futilidade de guardá-las, a curandeira enterrou o pequeno baú ao pé da árvore.

 

Numa bela tarde de primavera, sentada à sombra dela, como costumava fazer, a mulher viu, com surpresa, que botões começavam a despontar. Rapidamente, a árvore se cobriu de lindas flores que mudavam de cor ao longo do tempo. Ela dançou, feliz, ao seu redor, neste e nos outros dias que vieram. As flores se tornaram frutos que a curandeira observava, curiosa, enquanto se desenvolviam e amadureciam. Aos poucos, as pequenas bolotas verdes foram crescendo e se tornaram belos pomos dourados, que brilhavam ao sol e à luz da lua, doces como mel ao paladar. Ela descobriu que não só os frutos eram capazes de nutrir por vários dias, de uma forma que nenhum outro alimento podia fazer, como também que suas folhas e flores eram curativas, aquecendo os corações de quem os consumisse e tornando-os mais confiantes, abertos e alegres. Quanto mais a curandeira cuidava de sua amada árvore, quanto mais dançava, feliz, ao redor dela, mas flores e frutos nasciam. Ela começou a compartilhá-los com a vizinhança e com todos que a procuravam em busca de cura, e todos aqueles que recebiam essa partilha passaram a louvá-la como a melhor curandeira da região.

 

A essa altura, sua fama já havia se espalhado pelos arredores mais longínquos. Um dia, enquanto colhia os frutos dourados de sua amada árvore, ouviu ao longe uma voz conhecida, que cantarolava, acompanhada pelo som de pequenos sinos. “O prestidigitador, finalmente!”, ela exclamou. Ela foi até a entrada de sua casa e aguardou por ele, que parou a carroça em frente ao portão, desceu e caminhou em direção a ela, brilhante e colorido, com seu chapéu engraçado e seu sorriso encantador. Eles se olharam firmemente e se reconheceram. Sorrindo também, ela o convidou a entrar.  “Curioso, não sei bem o que é, mas há algo aqui que traz de volta as boas lembranças da minha vida”, ele disse. Ela sorriu novamente, em silêncio, divertida, porque sabia que não era por acaso.

 

A curandeira ofereceu a ele um chá, e ele aceitou. Sentou-se à mesa da cozinha, enquanto ela colocava algumas folhas e flores da árvore mágica na água que fervia sobre o fogão. Um aroma doce e pungente espalhou-se pelo ar. Trazendo a chaleira e duas canecas de louça pintadas por ela, a mulher sentou-se também. Assim que começaram a beber o chá, ele começou a falar. E falou e falou, longamente, sobre os lugares onde havia estado, as coisas que havia visto e feito. Contou que, numa de suas andanças, havia perdido seu tesouro mais precioso: uma semente de uma árvore mágica, cujos frutos nutriam de forma que nenhum outro alimento podia fazer e cujas flores e frutos, quando consumidos, tornavam os corações mais confiantes, abertos e alegres. Disse que carregava a rara semente com ele, na espera do momento propício para plantá-la, quando ele tivesse condições de cultivá-la e que, quando a perdeu, algo no seu coração começou a morrer. Que voltou a todos os lugares por onde havia passado em busca dela, perguntando e perguntando se alguém a havia encontrado, as vezes se enchendo de esperança ao descobrir uma semente parecida, até que desistiu e se recolheu no lugar mais escondido de uma escura floresta e passou longos anos em profunda tristeza, procurando a semente em todos os bolsos da sua roupa, em todos os cantos de sua carroça, sem jamais encontrá-la. Ela escutava em silêncio, atentamente. 

 

Por fim, em uma de suas raras idas à vila para buscar mantimentos, ele ouviu alguém falando sobre uma curandeira e sua árvore mágica, que dava frutos dourados, doces como o mel. Ansioso, ele quis saber onde era esse lugar no qual a árvore estava plantada e, assim que ouviu a resposta, subiu na sua carroça e partiu, os pequenos sinos pendurados nela badalando em alegre antecipação. Ele sabia, tinha certeza de que aquela árvore só podia ter nascido da semente que havia perdido, há tantos e tantos anos.

 

Ainda em silêncio, a mulher se levantou, sorrindo suavemente, e fez um sinal para que ele a acompanhasse. Ela foi até a porta da cozinha, a abriu e gesticulou para que ele passasse. E foi então que ele a viu, a majestosa árvore plantada no quintal, seus frutos brilhando ao sol. Ao redor dela, pessoas felizes, vestidas com roupas brilhantes e coloridas, dançavam, conversavam e ofereciam os pequenos e doces pomos dourados umas às outras, em celebração. Os olhos do mago se encheram de lágrimas e ele caminhou em direção à árvore, tocou no seu tronco com infinita delicadeza, depois o abraçou, apoiando-se nele. Ah, era como matar as saudades de alguém muito, muito amado e, assim, reviver. Ele voltou-se para a curandeira e a agradeceu, comovido: “Muito grato por ter plantado a semente e a cultivado até que se transformasse nessa linda árvore! Como eu sonhava vê-la, como duvidei de que isso um dia seria possível!”. Foi então que, finalmente, a mulher falou: “Sim, fui eu que a plantei e cuidei dela, mas ela é sua também. Se não fosse aquele nosso primeiro encontro na praça da aldeia, se não fosse a esperança de reencontrá-lo, se não fosse a benção com a qual você me presenteou, eu não teria encontrado a semente caída no chão, eu não teria encontrado em mim a firmeza e a inteireza necessárias para cultivá-la durante todo esse tempo”.

 

Então, o prestidigitador, sorrindo feliz, se juntou às pessoas que alegremente dançavam e festejavam ao redor da árvore. A curandeira, também sorrindo, olhou para o alto da árvore e viu, à luz suave do entardecer, um pequeno broto, tenro, fresco e frágil, abrindo lentamente suas folhas, verdes como o jade ao sol.

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