top of page

NÓS-CUIDADO

WhatsApp%2520Image%25202021-04-11%2520at

(por Ana Clara Renò)

ANA:

15/01/2021

Transparentar-me: desejo-ânsia de (ser transparente) Eu te diria esta palavra… ou vc a leria num dos meus escritos. Hoje eu vi alguém, como eu, perplexa por que você não existe mais em carne-viva e lembrei do meu ainda estranhamento e susto quando me lembro de que, sim, é verdade. Mas não é isso que, até que enfim eu vim te contar.

Vim te contar que ontem eu tomei uma chuva enorme e caminhei molhada por duas horas sendo estranhada por cada motorista que passava na estrada. Rio de mim mesma quando contei isso hoje de manhã pros meninos dizendo que era segredo e agora escrevo pra mais de nós viventes. Eu pensei que você ia gostar de saber e, ao pensar nisso, foi então que eu chorei… e que doeu. Até então a dor que eu sentia da sua partida parece que era errada sabe… parece que o tipo de dor que eu sentia te reduzia e um recurso humano de escuta pra mim, um recurso sim insubistituível e único mas ainda assim isso não me parecia “dolorível” ou justo. E hoje eu senti vontade de te contar várias coisas que aconteceram dentro de mim e no meu corpo desde ontem e era diferente ou melhor, eu percebi a dimensão delas… não era mais “eu queria que a Angélica me escutasse sobre isso” mas, “eu queria que ela soubesse disso, eu acho que ela ia gostar de saber” e as lágrimas libertas correram junto com o abrir do registro do chuveiro pro banho quente. É… eu acho mesmo que você ia se divertir com ou se alimentar das minhas histórias, acho mesmo que você ia gostar de saber o que eu imaginava enquanto caminhava. Uma conversa, um dedo deslizando de leve pela minha coluna toda, uma risada alta e solta que eu dava em pensamento e que às vezes me escapulia em meio à chuva e ao carros passando em alta velocidade. Acho que você ia gostar de saber de todos os estranhamentos que vivi quando da notícia da sua partida: a notícia “atrasada”, a sensação de ter desamparado nossos amados, o silêncio em meio aos pingos da chuva, as únhas que eu pintei pra ti em preto avermelhado e o medo, o medo de que esse universo que me habita fique sempre sempre (quase) invisível por não poder ser visto por alguns. O tanto que eu te vi me nutriu tanto tanto… até as coisas nãoobviamente-agradáveis. Não é justo (e ouso dizer que não é certo) não arriscar ser, ser como se é e nutrir o mundo com o que me habita, sendo agradável ou não.

Me lembro que em mais de uma ocasião eu, junto com a comunidade, professei:

Você crê que _______ Creio!

Você renuncia a _____ Renuncio.

Esse “renuncio” ecoa repetitivamente aqui.

Eu renuncio a que? A esconder-me, a mentir, a não ser? A palavra não me vem e eu fico sem ela e tudo bem, você diria “nos vemos semana que vem então?” e sorriria pra mim. E sim, sim, está tudo bem que a gente não vai se ver semana que vem, por que tem comunidade me acolhendo e sendo acolhida por mim, por que agente continua o trabalho árduo daqui, trabalhando e se divertindo e amando. Porque a gente continua curiosa no meio da mata, escutando o barulho da cachoeira, apostando que ela é pra lá mesmo sem saber se, quando chegarmos encontraremos a queda d’água ou uma caixa de som. Fica tranquila, vai em paz que a gente segue!

WhatsApp Image 2020-12-09 at 15.44.13.jp

MAIS UM DA ANA:

Este eu escrevi no dia 07/12/2020, ele é direcionado para as mulheres com quem eu tinha alguma relação de trabalho na época (a maioria ou todas ainda seguem comigo).

 

Bom dia queridas

Escrevo pra vocês juntas. Eu nesta retomada do trabalho depois de passar essa semana focando o olhar e a escuta nas reverberações (em mim mesma e em outras pessoas próximas) da partida da Angélica. 

Senti de escrever pra vocês, para além de contar que estou de volta, dizer também, em tom de partilha, um pouco do que já sei e percebi da importância da existência e da agora ausência da Angélica neste trabalho

Percebi que a Angélica é um dos pilares deste trabalho em vários sentidos. Primeiro e fundamentalmente por que era quem cuidava de mim, neste lugar de sustentar o cuidado mesmo, era naquele espaço-tempo que eu podia me abandonar e ser cuidada. E pra cuidar a gente precisa ser cuidada né... isso é o fundamento da hí pótese que eu pesquiso aqui com vocês.

Percebi também que a gente habitava um mesmo “planeta” como colegas cuidadoras de gente. Um lugar de experimentar uma não-hierarquização entre quem cuida e é cuidada, uma tentativa/experimento de relação dialógica e é muito louco que isso acontecia na minha relação com ela como terapeuta e também nas trocas sobre o trabalho em si que fazíamos em vários espaços e mais recentemente dentro da terapia mesmo e mais ainda recentemente num projeto compartilhado de pesquisa com mais duas colegas de investigação em não-violência e cuidado. Somos parte de um mesmo rolê comunitário, ainda incipiente mas muito muito potente (potência que fica mais visível agora, nesse enlutamento que compartilhamos).

bottom of page