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NÓS-CUIDADO

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(por Rachel Omoto)

Quando decidi contatar a Angélica Rente, era um momento em que me estava dando mais uma chance para fazer sessões de psicoterapia. Já havia feito terapia com outros dois psicólogos, mas em ambos os casos, chegou um momento em que, apesar da melhora em alguns aspectos pontuais, sentia-me estagnada e sem avançar em questões essenciais.

E por que, então, tentar novamente depois de certa frustração em experiências anteriores?

Participando de grupos de pesquisa e prática de Comunicação Não Violenta, entrei em contato com as ideias de Marshall Rosenberg em seu trabalho como psicólogo. Em uma de suas falas, dizia que muitas pessoas que ele acompanhava estavam acostumadas a pensar de um modo que implicava acharem que havia algo de errado com elas e, às vezes, uma lógica centrada na busca de diagnósticos também não contribuía. Marshall Rosenberg falava da importância de olhar para o que estava vivo no agora, para quais necessidades estavam sendo expressas naquele momento presente. Pensei: “quero encontrar uma terapeuta que não me olhe procurando um diagnóstico, mas como ser humano, no sentido mais pleno, profundo e abundante que essa palavra possa vir a ter; quero alguém que esteja nessa mesma jornada de busca dessa linguagem da vida...”.

Pedi, então, indicações nos grupos de pesquisa e prática de Comunicação Não Violenta e minha amiga, Ana Clara, falou da Angélica...

Ah, que saudade da Angélica! Com sua escuta cuidadosa e experiência em Gestalt-terapia, acompanhou-me em momentos de muita celebração, mas também de muito luto... Ajudou-me num processo profundo de autoescuta de necessidades, um processo de mergulho em minha essência, medos, sombras, não-ditos, potências... Muito generosamente compartilhou leituras, formas de expressão por meio das artes e até histórias de sua vida – quando eu pedia ou ela percebia que seria importante... e ela sabia, ela sabia o momento certo e certeiro.

E a generosidade dela foi tamanha que ela me ajudou, no processo de entender quem e o que me cuida, a seguir, mesmo quando ela não estivesse mais com sua acolhida nas sessões de quarta-feira, às 8h da manhã... algo que passou a acontecer a partir da semana do dia 29 de novembro de 2020.

Eu tinha receio, às vezes, de ela querer me dar alta. Uma pessoa me disse que provavelmente ela não faria isso, que provavelmente ela esperaria essa iniciativa vir do “paciente”. Para mim é estranho me referir a mim mesma como “paciente” da Angélica. Porque, com ela, eu tive essa experiência sobre a qual falei no início, de alguém que, como profissional da área de saúde mental, me olhasse... e me visse. Como ser em plenitude.

Acho que ainda está para ser cunhada uma palavra que dê conta dessa relação que a Angélica era capaz de tecer. Relação, sim, e sem perder as especificidades do processo terapêutico. Pelo que ouvi nas rodas de luto e celebração que ocorreram após sua partida, Angélica era capaz de transformar tudo em arte: a comida, sua horta, sua casa, seus estudos, sua participação política... Nesse sentido, talvez tenha tornado também o processo terapêutico uma arte!

Lembro com carinho dos momentos – sempre momentos cruciais – em que ela me propunha trabalhos com arte por entender a importância do simbólico e da experiência para mim. Eu me entregava aos papéis, cola, tesoura, pincéis, lápis de cor, giz de cera... Um pouco antes de sua partida, estávamos finalizando o trabalho com um tema muito caro a mim por meio de aquarelas – arte na qual ela me iniciou. E eu pedi a ela – desta vez a proposta veio de mim – que, após o trabalho com aquarelas, ela me ensinasse a bordar, pois queria trabalhar as questões que um determinado livro me suscitava a partir das linhas... seria um costurar-me costurando. 

Mas a linha se partiu. E ela não pôde iniciar-me no bordado.

Contudo, foi justamente um projeto sobre o qual lhe falei – o filme “Cadê Heleny?”, animação toda feita com arpilleras – e do qual participamos (ela, com uma belíssima arpillera; eu, com bonequinhos de pano por não saber bordar ainda), que me levou, posteriormente, a uma formação com um coletivo que borda resistência, o Linhas de Sampa (aproveito para agradecer à minha amiga Marina por ter sugerido que eu falasse para a Angélica sobre o projeto do “Cadê Heleny?”!).

E nos emaranhados da vida, nas linhas que às vezes se embaraçam na tessitura de nossa história, eu me lembro da Angélica, e busco transformar tudo em arte, ressignificando cada ponto e costurando sentidos, sempre em companhia. Como ela escreveu em suas redes sociais - e aqui agradeço à sua grande amiga, Vera, por ter recuperado este texto:

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Eu já não faço mais nada sozinha, nem pensar, e isso é libertador num grau de que nem dá pra definir. Sempre desconfiei das ideias de "empreendedorismo de si mesma", de "sucesso pessoal", de "auto-suficiência", e comprovar que elas são mesmo falácias é uma alegria. Me assumir como pessoa coletiva é um ato radical de descolonização do meu inconsciente, tão formado, como o de todas e todos nós, ocidentais, pelos parâmetros da binariedade e da separação. Eu celebro!

Com tantas e tantos que tiveram o privilégio de bem e conviver com a Angélica, eu celebro!

1 LELOUP, J. O corpo e seus símbolos: uma antropologia essencial. Rio de Janeiro: Vozes, 2015.

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